MENTIRA SINCERA

Paulo César Silva

Ele veio a mim. Apareceu na porta da minha casa, sem pai nem mãe. Estava confuso, sem entender o que acontecia à sua volta. Não compreendia muito bem o que ele falava, apenas lhe dei abrigo. Se instalou na sala, maravilhado com coisas banais. Um celular, a TV, um laptop. Ria-se de ouvir a música sair de pequenos fones de ouvido sem fio de um aparelho menor que seu dedão. Não perguntou onde, mas em quando estava. Abriu os braços em frente à janela, “voltei!”.
Se apresentou como Cazuza. “Como o cantor?”, perguntei. “Como eu mesmo”. Fiquei aturdido. Um louco em minha sala, daqueles que se acham Jesus ou Napoleão. Naquele caso, o cantor falecido há quase 30 anos. Mas, ele me parecia familiar. Enquanto se distraía com o laptop, pesquisei por fotos no celular. Pode parecer loucura, mas ele era idêntico. Aproximei-me e fitei seu rosto. Achou que eu o estava paquerando e sorriu singelamente. Comecei a indagar de onde ele tinha vindo e para onde ia. Apenas me disse que a muito vagava na lua deserta da pedra do Arpoador e, de repente, se viu ali naquela porta.
Contou-me histórias antigas dos tempos de Barão, de suas loucuras e do momento terrível que viveu após descobrir que seu prazer havia se tornado risco de vida. Alguns dos contos eu sabia, o que o surpreendeu. Lhe falei do filme e o mostrei no youtube. Se impressionou com o Daniel e chorou com algumas passagens. Comentava as incoerências e se lamentava por algumas de suas atitudes. Passou o restante da madrugada se vendo em variados vídeos. E quando o mundo estava a acordar, ele foi dormir. Eu não sabia o que pensar, nem em como agir. Com quem deveria falar? Putz, o Cazuza estava na minha casa!
Por sorte era sábado e eu não trabalhava. Ele acordou lá pelo meio-dia, comeu e se colocou a tagarelar. Perguntou sobre o que se ouvia hoje em dia e lamentou-se comigo quando lhe mostrei algumas… “Sequer sabem construir uma rima, Cartola teria vergonha”; “O que foi feito do verdadeiro sertanejo?”; “E achavam que o vai-e-vem dos meus quadris eram pornográficos!”. Depois falamos de seus contemporâneos, do quanto lutam para sem manterem por aí. Ah, e dos esquecidos também. Chateou-se por Renato ter sucumbido ao mesmo mal que o seu. Alegrou-se por Frejat ainda estar com seus ideais.
Quis saber sobre o Brasil, se ainda pagávamos por toda droga depois que ele morreu. Infelizmente tive de revelar toda a sujeira. Que chegamos muito perto de não ser mais uma grande pátria desimportante, mas fomos traídos por aqueles que nos deram esperança. Inclusive o sindicalista que ele mesmo elogiara em uma de suas últimas entrevistas. Alimentávamos sanguessugas que criavam leis que os beneficiavam. E agora, para piorar, a esperança de metade da população era um tolo cacofônico com discurso um tanto deturpado sobre gays, negros e mulheres. Quis conferir com os próprios olhos.  Se horrorizou com os comentários absurdos daquele homem. Meneou a cabeça e sussurrou “eu vejo o futuro repetir o passado”.
Passou o resto do dia fumando no terraço. Não quis mais conversa. Disse que iria embora. Me abraçou com os olhos marejados, não queria mais aquela realidade. Esperava um Brasil diferente, que Deus tivesse nos dado mais um pouco de grandeza e coragem. Nada pude fazer. Se despediu no crepúsculo daquele dia estranho. Velei sua caminhada até virar a esquina. Corri atrás, mas ele havia já desaparecido, provavelmente retornado para o lugar reservado aos extraordinários. Foi-se tão triste como da última vez em que definhava pela doença. Dessa vez por perceber que a babaquice, a caretice e a eterna falta do que falar ainda imperava por aqui.
Não me fez quaisquer promessas malucas , apenas me deixou nesse clipe sem nexo. Não sei qual aprendizado tirar disso tudo. Talvez tenha sido enviado para me embeber de alguma esperança. Contudo, nesse momento em que se encontra o país, não posso me contentar com migalhas dormidas, raspas e restos.
Perdão Caju, mas mentiras sinceras não me interessam.

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